Adenilde Petrina Bispo: Uma vida de militância pela periferia

Por Carolina Leonel

 

 

 

Percorrer e abrir caminhos talvez tenha sido sua maior motivação de vida. Nascida em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, Adenilde Petrina Bispo, 69 anos, veio parar em Juiz de Fora após o pai, que trabalhava em estrada de rodagem, estabelecer-se na cidade. Morou no Bairro Floresta e no Eldorado, até o pai se aposentar e comprar uma casa no Santa Cândida, onde mora até hoje. Em busca do básico para viver, aos 17 anos, Adenilde Petrina Bispo juntou-se a uma grupo de mulheres da comunidade, que lutou por melhorias para o bairro. Da “militância por necessidade” não parou mais. Na década de 1990, Adenilde encampou a luta pela democratização da comunicação e ajudou a criar, na periferia, a Rádio Comunitária Mega FM. Desde 2013, dedica-se ao Coletivo Vozes da Rua, um grupo de movimento negro, que se debruça sobre a questão por meio da cultura hip hop e do estudo de autores negros. Nele, vê a participação feminina ganhar visibilidade, porque presente, ela sempre esteve – garante. Já teve muitos sonhos. Alguns, viu realizar. “Hoje meu sonho é termos fraternidade e solidariedade. Queria que as pessoas respeitassem a natureza e houvesse mais igualdade”.

Adenilde Petrina Bispo é uma mulher que, além de livros, coleciona histórias. Prestes a completar 70 anos, carrega consigo a história do Bairro Santa Cândida, misturada à sua própria. “A minha caminhada começou e foi toda aqui no bairro”, faz questão de ressaltar. Moradora há mais de cinco décadas da comunidade localizada na Zona Leste de Juiz de Fora, ela viu chegar água, luz, rede de esgoto e calçamento ao Candinha – não sem se empenhar por isso, diga-se.

“A Dona Aparecida começou um movimento com as mulheres para poder lutar por acesso ao básico. Na época, eu tinha acabado de vir morar no bairro, tinha 17 anos, e comecei na militância por necessidade”, conta. Depois, veio a conquista de uma igreja e da escola de Santa Cândida. “Eu via muitas mães dormirem nas filas de escolas para tentarem matricular seus filhos. No dia seguinte, não tinha vaga. Foi aí que corremos atrás de construir a escola de Santa Cândida, construímos de mutirão”.

Dos primeiros movimentos, iniciados na adolescência, a “militância por necessidade” não parou mais. Na década de 1990, Adenilde encampou a luta pela democratização da comunicação e ajudou a criar, na periferia, a Rádio Comunitária Mega FM – fundada em 1997, ficou no ar por dez anos, até ser fechada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). “É como um vício. Não consegui largar os movimentos, e também porque a luta pelos direitos para o povo de periferia continuam sempre”.
Atualmente, a militante se dedica ao Coletivo Vozes da Rua, um grupo de movimento negro, que se debruça sobre a questão por meio da cultura hip hop e por meio do estudo de autores negros. A primeira vez que tomou contato com a cultura hip hop foi em 1993. Na época, escutou o “Homem Na Estada”, do Racionais MC’s e ficou maravilhada. “Eu pensei, puxa vida! juntou a batida forte da base dos Racionais com aquilo que eu tinha introjetado (sobre música), e as letras batendo, não tem como isso não mexer com a mentalidade dos jovens!”.

Foi também na década de 1990, conforme narra, que tomou consciência “de que era mulher”. Na primeira infância, apesar de gostar de ler os livros que seu pai, Luiz, trazia, e de querer ir além daquelas leituras, imaginava seu futuro limitado a atividades domésticas. “Na periferia, na nossa classe social, não temos consciência de que somos mulheres. Pensamos que estamos aí para trabalhar e sobreviver. Não temos vaidade, não nos achamos bonitas. Quando eu era jovem achava que meu futuro iria casar, ter filhos, e que minha vida seria limitada a isso. Mas, hoje em dia, como mulher negra, eu me vejo como alguém que sempre teve que guerrilhar para chegar a algum lugar, e o lugar que eu queria chegar era o conhecimento.”

“Foi através do Programa de Mulher que eu e outras mulheres aqui do bairro começamos a nos enxergar como mulheres. O programa discutia a história da mulheres, a história de luta, de conquistas e nos mostrava que ainda tínhamos muito a conquistar. Foi muito importante tomar essa consciência para percebermos que éramos mulheres e que construíamos a história do Santa Cândida”, lembra Adenilde sobre um dos mais de 30 programas presentes na grade da Rádio Mega FM. A discussão era veiculada todos os sábados e surgiu a partir da iniciativa da professora da UFJF, Cláudia Lahni. “Os nossos programas eram assim, tinham entretenimento, mas sempre traziam informação e conhecimento, sempre”.

Andando em círculos, junto e em busca de si

Conhecimento que deve ser sempre compartilhado, defende. “Eu tenho pensado muito sobre a questão da circularidade. Na África, as pessoas discutem tudo em um círculo. Essa ideia de roda de conversa, roda de samba, veio de lá. E eu aprendi com filósofos como Platão, Sócrates e até com Heidegger, que a circularidade faz você encontrar o ser: se você anda em círculo, você encontra o seu centro. E precisamos nos centralizar, trocar experiências com o outro, olhar pra si. O jovem hoje está muito linear, é preciso que a gente olhe pra dentro e para o outro para conhecer a si e ao outro, para compartilhamos o que somos e a nossa história. Sem memória, a gente não tem vida e não tem história”, afirma a professora Adenilde, que lecionou 28 anos da rede municipal de ensino, após se graduar em filosofia e história pela UFJF.

Em 2017, Adenilde recebeu o título de Doutora Honoris Causa concedido pela UFJF, o primeiro da instituição conferido a uma mulher negra. “Esse título para mim foi uma surpresa. No início, fiquei relutante em receber, porque não queria que me envaidecesse ou que as pessoas achassem que eu não merecia. Mas aqui no Santa Cândida me fizeram perceber que não era um título meu, mas de toda a comunidade. E é verdade, esse título representa a nossa luta que é, sempre foi e será coletiva. Temos que continuar fazendo com que a solidariedade avance, que a mudança chegue, porque a revolução é permanente”, reflete uma das principais vozes da periferia de Juiz de Fora e, que apesar de não se considerar, é referência para muitos.


"Foi só através do Programa de Mulher, que ia ao ar na Mega FM, na década de 1990, que eu e outras mulheres aqui do bairro começamos a nos enxergar como mulheres. O programa discutia a história da mulheres, a história de luta, de conquistas e nos mostrava que ainda tínhamos muito a conquistar. Foi muito importante tomar essa consciência para percebermos que éramos mulheres e que construíamos a história do Santa Cândida"

Adenilde Petrina

Inspirada pela avó, sempre seguiu em frente

Sua principal referência feminina, diz, foi a avó Ana Josina, a qual todos conheciam por Sinha’Ana. Em uma família predominantemente de mulheres, ela conta que cresceu cercada por referências femininas, mas só tomou consciência das implicações dessa formação familiar anos mais tarde. “A minha avó foi mãe solteira de três mulheres, e aqui em casa somos quatro irmãs e apenas um irmão. Ter minha avó como referência foi muito importante para mim. Ela criou sozinhas as três filhas e nunca deixou a peteca cair. Sempre nos falava para não abaixar a cabeça e que tínhamos de enfrentar as lutas quais elas fossem. Para ser mulher era preciso ter coragem, ela dizia”.

Percebendo a possibilidade de alargar seus horizontes, Adenilde bateu o pé com a mãe, Lindaura, e foi estudar. Optou por Filosofia devido à área de Cosmologia. “Queria ser astrônoma, porque amava olhar o céu, mas não deu. Daí fui para a ‘terra de ninguém”, como minha mãe achava que era a Filosofia. Eu respondia: não somos ninguém mesmo, então estou no lugar certo”, ri, ao rememorar o argumento que arrebatou a mãe.

Enquanto responde às perguntas, procura um livro com a destreza de quem conhece bem a ordem em que estão nas prateleiras cinzas da biblioteca que montou em casa. “A autobiografia de Malcolm X é minha Bíblia”, revela. “Lá, na década de1960, como diz os meninos, ele já deu todos os ‘bizus’ pra nós. Agora estou lendo um livro chamado a “Armadilha da identidade”, porque estou questionando muito a questão do identitarismo, que já em 1964 o Malcolm dizia que era um tiro no pé. Então estou tentando entender em que sentido isso se dá”.

Sua ânsia pelo conhecimento anda junto com a da luta pelo coletivo. “Se a gente não compartilhar, não debater, não adianta de nada. É por isso que estamos preparando uma live para discutir esse tema no coletivo (Vozes da Rua). Atualmente as atividades do Vozes da Rua acontecem de forma remota, mas há preparativos para que os encontros presenciais e as discussões sejam retomadas – em círculos.