São 172 anos de muita história para contar e reverenciar, mas neste aniversário de Juiz de Fora, a Tribuna de Minas convida a cidade a olhar para o futuro. Para isso, fomos buscar inspiração em Rosa Alegria, futurista profissional há 20 anos e pioneira em estudos do futuro no Brasil. Referência internacional por sua visão crítica, sistêmica e humanista sobre inovação em diversos temas, ela está entre as mulheres futuristas mais reconhecidas da América Latina, tendo integrado inclusive o conselho do Global Urban Development. Nesta entrevista exclusiva, Rosa traz diversos conceitos do futurismo, como cosmolocalidade, democracia antecipatória, reflorescimento urbano e cidades antifrágeis e integrais, mas acima de tudo nos incita a ousar sonhar a Juiz de Fora onde queremos viver.
Como será viver na cidade do futuro?
Rosa Alegria – O futuro está nas cidades, assim como tudo nasce nela. Claro que depois da pandemia muda um pouco essa percepção, porque antes a vida acontecia fora. Agora também tem esse pensamento de que ela acontece dentro de casa. As pessoas estão mais recolhidas. Não sei por quanto tempo. Essa harmonia entre o que acontece dentro e fora de casa tem que acontecer. Não pode haver dois mundos estanques. Tem que haver uma complementação de forma harmoniosa, acolhedora, de modo que as pessoas se sintam bem. Temos mais de 200 países, nações, 7 mil línguas, mas as cidades se formaram antes. Nelas aconteceram as grandes inovações, as grandes transformações, as grandes revoluções. A cidade do futuro já começou a se desenhar. Os futuristas consideram o mundo antes e depois da pandemia. Dois anos que equivalem a algumas décadas de mudança em que a cidade foi o ponto de convergência, de soluções e de problemas. Algumas responderam bem, outras não. Como futurista, penso que existe uma grande falha no planejamento urbano que é ausência da coletivização do futuro.
Quando se planeja uma cidade, salvo alguma exceção que sempre há, isso não se dá coletivamente. A primeira falha é a de não se olhar para o futuro. Estamos aí numa sociedade de rodas, em cima de estradas, poluição de CO2, à base de gasolina, porque lá atrás alguns centros do mundo não olharam a exaustão, a insustentabilidade que o transporte rodoviário poderia causar para o mal da humanidade. Outros lugares pensaram mais no futuro. Olhar para o futuro agora é mais importante que antes, porque estamos entrando em um momento de uma fragilidade tremenda da humanidade, a ponto de não sabermos como sobreviver às ameaças ambientais que estão a caminho. Há cidades ameaçadas de desaparecer. Para uma cidade ser vigorosa, ela deve olhar para o futuro, mas não com seis, sete pessoas ao redor de uma mesa ou cristalizada dentro de um plano diretor, separado do coletivo e imposto de cima pra baixo. A identidade de uma cidade é a coleção de identidades de quem vive nela. É a coleção de hábitos, de costuras, de reentrâncias que foram desaguando ao que ela é hoje. Não tem como pensar no planejamento sem olhar para frente, porque as ameaças e as oportunidades para Juiz de Fora não serão as mesmas daqui a dez, vinte, trinta anos. O futuro ainda não é de todos. É preciso colocar toda a representatividade da cidade ao redor desta grande mesa. A visão de futuro coletiva é poderosa. Se uma cidade reúne seus habitantes na direção de um mesmo sonho, não há nada que possa detê-la.
Você pode falar sobre o modelo de governança, chamado democracia antecipatória, que tem muito a ver com essa questão do planejamento urbano?
Que bom que você perguntou isso. É um conceito ainda muito pouco conhecido, infelizmente, trazido pelo grande futurista, Alvin Toffler, autor de ‘A Terceira Onda’. Ele previu o que acontece hoje com a chamada democracia antecipatória. É, na verdade, um tipo de intervenção pública, no sentido de trazer a população a bordo nos seus desejos, na sua visão de futuro, nos seus sonhos. É criar um diálogo, fazendo com que as pessoas se antecipem às mudanças. Abrindo aqui um parênteses, o futurismo é uma prática, uma disciplina científica, para preparar as pessoas, as cidades, as organizações, os governos a olharem para onde está indo o mundo e como está a cidade, como ela se posiciona, como está acompanhando e se preparando. A democracia antecipatória é um sistema de governança que faz com que as cidades fiquem mais resilientes às mudanças ruins ou antecipe as boas. Você pode inovar, chegar na frente. Temos várias cidades inovadoras. Trazem a democracia em uma perspectiva de futuro. Uma criança que está nascendo vai viver no ano 2100. E o que as cidades estão fazendo para que este coexistir, habitar, essa experiência urbana seja melhor ao que ela está vivendo hoje? É preciso olhar para as novas gerações. Estamos ocupando de uma forma geográfica, de forma simbólica vou falar à frente, o espaço daqueles que vão viver nesta cidade durante décadas. Estamos olhando só para o agora, com imediatismo. É o carro, a pick-up, não importa se não tem calçada, se não tem espaço de convivência. A gente não deixa de ser um neocolonizador dessas novas gerações. A colonização simbólica é o conceito de como é viver no mundo que estamos destruindo. Temos um papel ainda a desempenhar. Como diz um provérbio indígena americano, estamos tomando emprestado o mundo das futuras gerações. E fazemos isso com consciência? Não. Esse é o papel da democracia antecipatória, esse é o papel do governo que precisa ter essa noção de ancestralidade. De onde viemos e para onde estamos indo. Há uma série de conceitos que precisamos trazer, como, por exemplo, a cosmolocalidade. Estamos há mais de 30 anos, numa grande frente, daquilo que se chama globalização. As cidades passaram a ser do mundo. Cidades globais. Estamos vendo um movimento reverso. Voltando às localidades, voltando às soluções pequenas, comunitárias, mas não da forma como acontecia no passado. Hoje há um senso global de que pertencemos ao planeta. É uma questão até cósmica. A cosmovisão da cidade precisa ser detectada. Ela dá a identidade desta cidade. Qual é a cosmolocalidade de Juiz de Fora? Isso tudo tem a ver com herança, cultura. E como se prepara para um futuro ameaçador? Aqui chegamos ao conceito de antifragilidade. Uma cidade antifrágil é aquela que inova a partir das incertezas, das dificuldades. Tema muito bem explorado pelo expert em Place Branding e Placemaking, Caio Esteves.
Como você enxerga o papel da educação na cidade antifrágil?
Uma coisa que gostaria de saber é como andam as relações entre as diferentes gerações em Juiz de Fora. Como está a intergeracionalidade? No início do século 20, a gente morria com 30, 40 anos e não conseguia ter convivência com mais de uma geração, às vezes, quando muito com os avós. Hoje, chegamos a seis gerações. Outra iniciativa que vai nos levar a uma cidade mais criativa, mais potente é promover o diálogo entre mais velhos, mais jovens, não no sentido de quem sabe mais. Os mais novos são a geração digital e os mais velhos são a História viva. Livros humanos abertos. Fazer, por meio das escolas, por exemplo, com que as crianças sejam mini orientadores do prefeito. O País de Gales criou o Ministério das Futuras Gerações que promove políticas públicas pensando lá na frente. O que as escolas de Juiz de Fora estão ensinando? Qual é a visão de mundo delas? Normalmente as escolas ainda estão seguindo a cartilha da Revolução Industrial, como se o futuro fosse só trabalho, só escala. As escolas estão ampliando a imaginação dos jovens? Estão fazendo com que os jovens tenham fé no futuro ou medo dele? Quando perguntados como será o futuro, adolescentes respondem que haverá robôs matando humanos, alienígenas invadindo o planeta Terra. Só visão negativa. Quero trazer a importância de ampliar a imaginação nas escolas, trazer oxigênio para essa narrativa tóxica que existe na mídia, só distopia, e ensinar as crianças a olhar para o futuro e não só para a História que é importante, mas é preciso educar para o futuro. Hoje, a gente não consegue antever o que vai acontecer a três, quatro anos. Que tipo de profissão será necessária? Com que vão querer trabalhar? Eles têm que criar o que querem. Discutir democracia, participação, estar em contato com a natureza. Será que o objetivo do mundo é trabalhar como a gente faz hoje neste sistema de escravidão voluntária?
O que é o futuro de dentro para fora?
Temos que olhar para os jovens como agentes de mudança. É aí que entra o futuro de dentro para fora. Existem dois tipos de mudança básica. Uma que acontece no mundo e precisamos olhar para ela e nos posicionar. E existe aquela que acontece no interno, que você faz acontecer. A gente fala muito no futurismo em agência humana. Temos que desenvolver nas escolas um trabalho de forma que os jovens se apropriem da sua própria capacidade de influir neste futuro e não serem vítimas dele. Eles estão morrendo de medo do futuro. O medo paralisa, traz pessimismo e até violência. Estamos criando não só nas escolas, mas na sociedade como um todo, através dos sistemas midiáticos, das fake news, da manipulação da informação, uma sociedade desnutrida de esperança. Não estamos sonhando mais. O dom mais divino que o ser humano pode ter é o de sonhar. Como diz Sidarta Ribeiro, temos que recorrer aos sonhos como instrumento básico para criar nosso futuro. O futuro de dentro para fora é o mais importante, porque se você, a partir do sonho, se instrumentaliza, através de ferramentas, técnicas e planos facilitados pela escola e por toda a sociedade, nossa, você vai mudar, influenciar o futuro, tomar conta dele, colaborativamente. No mundo que aí está, ninguém mais faz nada sozinho. Sonhos coletivos, sonhos complementares. Ser cocriador do futuro e não vítima dele. É isso que fará as cidades reflorescerem. Gosto muito desse termo que veio de uma conferência que participei em Curitiba. O reflorescimento urbano é a volta da importância da localidade. Estamos vivendo uma neorrenascença em que as cidades passam a ficar mais fortes, mais importantes que as nações. Essa pandemia veio trazer isso de forma mais evidente. As grandes respostas vieram das pequenas localidades.
Que tipo de humano precisaremos ser para viver neste futuro?
A grande inovação virá de um novo conceito do que é humano. Nós nunca mais seremos os mesmos, porque hoje somos seres intermediados, ampliados, aumentados pela tecnologia. Espero que o novo humano seja sustentável e feliz, e que possa equilibrar de forma razoável o que é tecnologia, o que é humano. Uma integração dos nossos corpos biologicamente com os átomos das matérias, com os bytes da informação. Enfim, o que precisamos é desse equilíbrio a nosso favor. O novo humano, bem equilibrado, será a grande inovação. Ele será capaz de muitas coisas integradas pela tecnologia. Outro conceito que gostaria de trazer é o da Teoria Integral, de um filósofo chamado Ken Wilber. Ele tem essa visão integral, do hólom. Nós não somos apenas cultura, comportamento, tecnologia. Somos uma integração de várias dimensões. Há uma escritora, Marilyn Hamilton, a conheci em San Francisco, e, quando falo sobre cidades, me lembro da visão dela sobre cidades integrais. Quais são os princípios diretores de uma cidade integral? De acordo com Ken Wilber, tem a ver com o plano individual, o plano coletivo, o interior e o exterior. Baseada nisso, ela traz três princípios que são: o primeiro, ‘cuide de si mesmo’. O segundo, ‘cuidem-se uns aos outros’. E o terceiro, ‘cuidem desse lugar’. A gente não pode cuidar de uma cidade se a gente não está se cuidando. Se está devastado pela miséria, pela fome, pela injustiça, pelo transtorno psicológico. Depois disso, precisa sentir que está em uma coletividade. Cuidarmos uns dos outros e, aí sim, cuidar desse lugar. As plantas não crescem na sombra.